Trabalhar menos para construir um futuro feminista

Gabriela Vuolo
7 min readMar 17, 2021

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Para celebrar o Dia Internacional das Mulheres, o Greenpeace Canadá convidou as mulheres que fazem parte de sua equipe a compartilhar perspectivas individuais sobre seus papéis e experiências enquanto mulher no movimento ambientalista.

Apesar dos milhares de quilômetros que nos separam do Canadá, o relato trazido pela Diretora Executiva da entidade, Christy Ferguson, é bem próximo da realidade de dezenas (talvez centenas?) de mulheres brasileiras que atuam no movimento socioambiental.

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TRABALHAR MENOS PARA CONSTRUIR UM FUTURO FEMINISTA
Christy Ferguson — 7 de março de 2021 (texto original em inglês)

Meses adentro na pandemia, física e emocionalmente exausta por tentar gerenciar uma organização enquanto tomava conta de uma criança pequena em tempo integral, e tinha um assunto que realmente me pegava: auto-cuidado. É difícil descrever o que eu sentia quando alguém me falava que eu devia dar uma caminhada, dormir um pouco mais, ou tirar um tempo ‘só pra mim’. Como essas palavras gentis, bem-intencionadas podiam gerar esse sentimento de raiva, por causa da completa falta de entendimento que elas expunham. E eu sei que não sou só eu — recentemente o New York Times criou um número de telefone específico para que mães trabalhadoras pudessem simplesmente gritar ao telefone. Pode acreditar: se a gente pudesse só relaxar um pouco, a gente já teria feito isso. O sistema e a cultura em que vivemos simplesmente não permite.

Como em muitos outros casos, a pandemia não criou o problema em si, mas colocou o tema em evidência ao levar o problema ao extremo. Como explica Pooka Lakshmin, parte do que foi revelado é uma traição da sociedade para com as mães trabalhadoras: “Enquanto o esgotamento (ou burnout) coloca a culpa (e portanto a responsabilidade) no indivíduo e diz pras mães trabalhadoras que elas não são resilientes o bastante, a traição aponta diretamente para as estruturas esfaceladas ao redor delas”.

Fernanda Mourão e sua filha Maria Flor participam de um evento comunitário com mães ativistas das periferias de São Paulo. O encontro "Café comunitário e prosa: maternidade e alimentação saudável" fez parte de uma série de eventos sobre empreendedorismo social, comida sem veneno, e direito à cidade e à saúde. Crédito: Lena Silva/Greenpeace

Mas e se as coisas fossem diferentes? Se, enquanto ativistas, a gente pode imaginar um sistema global de energia completamente diferente, uma relação radicalmente diferente entre seres humanos e a natureza, um fim para o capitalismo explorador — então com certeza a gente consegue imaginar um mundo em que passar menos tempo no escritório (virtual), priorizar a vida pessoal e familiar, e aparecer pra trabalhar revigorada e cheia de energia seja a regra.

Neste Dia Mundial das Mulheres, tenho pensado em como rejeitar a cultura tóxica do trabalho excessivo é um ato feminista — e como uma visão completamente diferente da vida profissional empodera mais mulheres a assumir papéis de liderança, e enriquece nossas organizações com muito mais ideias e perspectivas.

O preço que pagamos pela cultura tóxica do trabalho excessivo
Em uma cultura tóxica de trabalho excessivo, trabalhar longas horas, estar sempre disponível e colocar a família de lado para responder a demandas são a norma. E eu sinto muito ao dizer que essa cultura é tão forte em ONGs com propósito como o Greenpeace quanto em qualquer outro lugar — afinal, como é que alguém pode justificar trabalhar menos horas quando o trabalho é avançar na agenda de direitos humanos ou parar as mudanças climáticas? Enquanto ativistas de coração, os sacrifícios pessoais que fazemos pelo nosso trabalho podem se transformar em medalhas de honra, muitas vezes até mesmo a base de nossas identidades.

via The Nap Ministry

Mas quando essa cultura tóxica de trabalho excessivo se choca com um senso de urgência terrível sobre o trabalho em si, a pressão pode ser esmagadora. E ela deixa muita gente de fora. Muitas pessoas, incluindo mulheres com responsabilidades significativas de cuidados, simplesmente não tem como crescer e prosperar nesses ambientes de trabalho sem extremos sacrifícios pessoais. Quando seguimos trabalhando dessa maneira apesar disso, estamos desvalorizando essas mulheres enquanto pessoas e suas contribuições, e estamos perdendo. No fim das contas, esse é só um dos muitos jeitos que as organizações com propósitos tem de se auto-enganar e acreditar que “não podemos nos dar ao luxo” de ser mais inclusivos.

Enquanto mãe solteira de uma criança pequena, eu sei em primeira mão como essa cultura de trabalho pode ser incompatível com ser a principal cuidadora de alguém. Estou no Greenpeace há muito tempo, e por muitos anos eu simplesmente aceitei que se eu tivesse uma criança, eu teria que deixar meu trabalho de campaigner. Afinal, quando eu olhava em volta pras pessoas em cargos similares ao meu, eu quase não via mulheres com filhos. Eu via pais, mas não mães. Havia algumas exceções, algumas mulheres incríveis que fizeram dar certo — mas a pressão sobre elas era imensa, e quase sempre elas acabavam saindo também. Não tenho dúvidas de que enquanto organização e enquanto movimento, nós perdemos e continuamos perdendo mulheres brilhantes por causa de uma cultura de trabalho intolerante e não-inclusiva que valoriza mais uma noção antiquada de produtividade do que as ideias e contribuições das mulheres.

E o pior: não é eficaz. Quando compramos a ideia de que trabalho incansável é o que nos faz alcançar nossas metas, estamos nos enganando. Fazer mais coisas não é o mesmo que ser o mais efetivo. Fazer mais reuniões não é a mesma coisa que cultivar as maiores conexões. A gente sabe disso — mas mesmo assim, qualquer um que esteve perto da cena ambientalista ou de ONGs por algum tempo conhece muitas pessoas que passaram por esgotamento severo, problemas de saúde sérios relacionados a estresse, ou consegue se lembrar de muitas mentes brilhantes que saíram de suas organizações ou do movimento porque simplesmente não podiam continuar. (Pergunta adicional para quem está listando nomes mentalmente: quantas dessas pessoas eram mulheres? Quantas eram mulheres não-brancas?). E como é que isso nos ajuda a resolver a crise climática?

via sarahlazarovic

Mas diferente do que nos vendem sempre, a resposta para esse problema não é auto-cuidado ou bem-estar pessoal — que quase sempre acabam só como mais uma coisa na nossa lista de tarefas sempre crescente. O fato é que sem uma mudança de cultura maior e um tom vindo de cima, indivíduos que delimitam limites firmes e colocam suas vidas e suas famílias acima de seu trabalho quase sempre vão ser penalizadas de um jeito ou de outro. Certamente, essas pessoas quase nunca vão ser vistas como candidatas sérias a posições de liderança.

A pressão para continuar dessa maneira é ainda mais intensa para mulheres e pessoas não-brancas, que precisam trabalhar e provar sua competência mais que os outros para serem vistas como inteligentes, sérias e legítimas em tantos espaços de trabalho. Eu mesma com certeza comprei essa ideia por muitos anos, e me arrependo profundamente pela pressão que coloquei sobre outras pessoas como consequência. E pra ser sincera, eu não acho que estaria na posição que estou hoje se eu não tivesse esticado a mim e a meus colegas além do limite por tantos anos, e sacrificado tantas outras coisas pra fazer o trabalho. Mas não é isso que eu quero para quem vier depois de mim.

Existe um outro jeito
Essa é uma das razões pelas quais o Greenpeace Canadá está tentando algo diferente: uma semana de quatro dias.
Não uma semana de trabalho comprimida, onde as horas equivalentes a cinco dias de trabalho são espremidas em quatro dias mais longos, mas sim uma redução de 20% nas horas, com pagamento integral. Nossa avaliação depois de 10 meses? É a melhor coisa.

Nosso trabalho está mais forte do que nunca. Nossa equipe se sente mais valorizada. Está todo mundo mais saudável, cheio de energia e mais criativo no trabalho. As pessoas já não sentem tanto que se sair bem no trabalho, ser feliz e se sair bem em casa estão em tensão constante e insolúvel. A flexibilidade que esse modelo oferece permitiu que mais pais e mães continuassem trabalhando ao longo da pandemia. E enquanto organização, sinto que estamos fazendo um trabalho melhor no que diz respeito a nossos valores, trabalhando para criar um mundo diferente e uma cultura diferente da que nos foi entregue.

Não é perfeito, e ainda temos um longo caminho adiante. Nossos jeitos de pensar e trabalhar são muito arraigados, ainda fazemos muitas reuniões e colocamos muita pressão em nós mesmos e em nossos colegas. Nossa visão de uma cultura organizacional verdadeiramente saudável ainda é uma aspiração. O que é compreensível, na verdade: nossa motivação para alcançar nossos objetivos permanece tão forte quanto sempre foi, e nós nunca tínhamos visto ou experimentado uma outra maneira de fazer as coisas.

Mas nós somos pessoas criativas que adoram vislumbrar um futuro diferente. Então nesse Dia Internacional da Mulher, vamos reimaginar o trabalho. Vamos criar organizações e movimentos que valorizem as pessoas enquanto seres humanos, e não só como trabalhadores; que acolham as perspectivas e contribuições de todas as pessoas que quiserem oferecê-las, e não só de quem tem tempo ilimitado e disposição para o auto-sacrifício. E vamos ser felizes enquanto fazemos nosso trabalho.

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Quem sou eu? Eu sou a Diretora Executiva do Greenpeace Canada, e a mãe de uma criança de 3 anos de idade muito doce e engraçada. Uma ativista de longa data no Greenpeace, eu entrei para a organização pelo ‘peace’ (paz, em inglês) e fiquei por causa do ‘green’ (verde, em inglês). Eu acredito que o Greenpeace é de coração uma organização guiada por princípios, e que a justiça deve ser uma parte integral de tudo que fazemos.

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